quinta-feira, 22 de novembro de 2012

O grande artista faz diferença

Do alto do viaduto Plínio de Queiroz, sobre a Nove de Julho, mais de oito décadas de batuque me contemplavam. A Vai-Vai se preparava para mais uma noite de ensaios. O meu destino era outro: o teatro Maria Della Costa, onde assistiria à peça "A Sogra que Pedi a Deus". Vestido de arlequim, no entanto, o Criolé doido romperia o Bixiga e levaria o seu samba para dentro do espetáculo.

À subida para o auditório, uma senhora amparada pela neta discorria sobre a atriz que dá nome ao teatro: "Foi uma artista muito importante". De fato, a atriz gaúcha refinou o talento artístico em Lisboa e desenhou a carreira encenando gente como Jorge Amado, Nelson Rodrigues e Plínio Marcos.

Enquanto subíamos, um compilado de recortes emoldurava as suas palavras. Fundada em 1954, a casa fora projetada "só" por Oscar Niemeyer e Lúcio Costa, e contou com montagens consideradas muito imponentes. Só que, às vésperas dos sessenta, necessita de uma repaginada. Ainda que confortáveis, as cadeiras rangem e a cortina está remendada. Um incauto do público chegou a comentar que ele parecia o mesmo dos tempos da fundação.

Flávia e Renato planejavam havia muito uma viagem de lua de mel ao Caribe. Mas parece que tudo dá errado: ela é chamada de volta ao emprego e Dona Zulmira, a sogra, resolve passar um tempo na casa porque o encanamento da sua estava passando por reparos. Reta, a trama a partir daí se enfeita de poucas situações e algumas caixas de pandora, mas não se desvia do seu mote principal: a rivalidade entre a velha e o marido de sua filha.

Quando o duelo está para começar, Criolé doido dá de saci e resolve aprontar o seu samba: dá pau no som do teatro, e o elenco é obrigado a improvisar. O incidente quebra a invisível barreira com o público que, longe de se portar como Bárbara Heliodora, sinaliza que tá tudo certo. As tais brechas dão ainda mais graça ao evento. Numa das mais divertidas, Zulmira se esquece de um nome, e recorda certa vez em que fazia uma Rapunzel com peruca chanel. Lembrou o nome! Foi em frente.

Na pele de Zulmira, Papa tira da cartola, ainda que inconscientemente, o espírito do musical Hairspray - que mais tarde virou delicioso filme - e a peça As Filhas da Mãe, em que homens se travestem de senhoras.  O marido, interpretado pelo também ótimo Alexandre Freitas, bem de longe, vislumbra Jim Carrey com interessante jogo de expressão e presença de palco - é impagável a dança com que Renato comemora as férias, lá no comecinho da cena.

No apagar das luzes, desvestem-se em definitivo Flávia, Renato e Zulmira. Ainda pintado de sogra, o excelente Renato Papa pede desculpas pelo incidente e se insurge contra as falhas do Della Costa. Com a autoridade de quem esgrimiu os entreveros com maestria - e do "louco" que protagonizou quatro peças em um único fim de semana.

Não poderia a peça prescindir de uma pitada de erotismo e palavrão. Até porque, se o fizesse, soaria ridiculamente artificial. Passa entretanto longe do despautério. A exuberância de Flávia tinha tudo para cair na vulgaridade. Não caiu. Porque, mesmo discreta em cena, a esposa ganha de Soraya Zaffarani uma elegância que poucas vezes vi em cena.

Nos agradecimentos, Papa fez propaganda de um restaurante bixigano que inventou prato com seu nome que tem mandioca como ingrediente. Usou o mote pra me lançar uma brincadeira: "Imagina você, negão, ir lá e pedir um prato com mandioca. Não dá, né?"

Pra lá de simpáticos, os três se postaram ao lado da porta de saída para cumprimentar o público. Desafiado pela sorte, o elenco mostrou ter feito a diferença, e misturou o proposital despojamento do texto com interação e improviso, que resultou num espetáculo de atmosfera única.

Na saída, o ensaio da Saracura corria solto, e Criolé ganhou novamente a Praça 14 Bis. Mas, depois de tudo, o deus samba há de me perdoar por ter ficado, dessa vez, em segundo plano.