quarta-feira, 30 de outubro de 2013

Abraço Fraterno - Pipe e Lila

Herculano nem aguardou a última nota. Novamente a Abraço Fraterno ficava pelo caminho. Ainda que arrebatasse o Anhembi e os setores próximos à dispersão a saudassem como campeã. Desfilaria no Acesso mais um ano. Terá pairado o tal cheiro de clorofila? Preferia crer em lisura, mesmo que soasse ingênuo. A bucha que haveria de segurar vinha mesmo de dentro. Houve quem, nos cantinhos, criticasse o enredo. Outros, mais venenosos, arrebentavam com o samba.

Nada mais viria ao caso, pelo menos por ora. Queria chegar ao escritório da presidência e respírar. No último ano do mandato, precisava enfim ir ao Especial. Era uma promessa de fé ao velho pai. Antes que se gerasse a nova folia, precisava de um período sabático. 

Interrompido por uma batida à porta.

- Tudo bem aí?

Era Tia Bá, a chefe da ala das baianas:

- Daquele jeito, né? Vem chumbo grosso por aí
- Coragem! Daqui a um mês começa de novo. E tudo vai ser diferente.

Adorava aquela prima mais velha. Era tão irmã quanto Mara, também mais velha. Foram os três e Nelson, o pequeno, muito juntos na infância, e a coisa continuou na idade adulta. O que os unia de verdade, no entanto, era a paixão incondicional pelos velhos, Pipe e Lila, que agora habitam outra dimensão da vida.

Antes de meditar, precisava botar ordem no escritório. Viu cair duas coisas a que não dera muita atenção nos últimos meses, dada a concentração máxima no desenrolar do Carnaval. 

Era a foto em que, ainda bem pequeno, ganhava um beijo do pai. Ainda que já tivesse superado a partida, mergulhou em lembranças e deixou uma lágrima escapar.

- Que saudade, meu velho.

Pipe foi o mais carinhoso dos mortais que conhecera em vida. Sabia educar sem nunca levantar um braço. E enchia de tanto carinho e incentivo que Lila, a mãe, precisava fazê-lo baixar a bola. A Bá contou que, certa vez, ainda pequena, fora visitá-lo no Rio. Na despedida, recebeu um abraço, e sentiu cada palavra como um maná; triste na embalagem, profunda no conteúdo:

- Eu te amo muito

Chorou copiosamente colo da avó, já dentro do ônibus. Depois de uns anos, já de volta a São Paulo, ele contou que a saudade dela era o que mais angustiava naqueles lindos anos cariocas.

As suas lembranças, Herculano, ficaram também tatuadas, não é? Nunca se esqueceria da primeira vez em que Pipe o levara a um jogo do Corinthians. Tinha seis anos. Mais gratificante do que tudo era ter, ele mesmo, feito especial para o pai aquela tarde de domingo. Quando o "Bando de Loucos" entoou aquele canto de que tanto gostava, não resistiu e cantou junto. Olhou para o velho e a ele estampou aquela indescritível felicidade. O homem alto e magro, que aparentava ter menos idade e cara de durão, confessou ter virado o rosto pra não ser flagrado em plena emoção.  No dia seguinte, escreveu um texto vindo daquela alma tão encharcada de céu. Na crônica, dizia: "É maravilhoso ver o seu filho partilhar a paixão que há muito é sua. Mas fazer o menino tão feliz "não tem preço". Obrigado, Fiel".

Voltou ao presente fortalecido. Prometia a si mesmo que faria a Abraço alcançar a elite. Era uma pressão que nunca lhe fora imposta pelo velho. Sabia que o orgulhava de algum jeito pelo exemplo. Mas a agremiação que ele ergueu com tanta luta precisava estar à altura. A conversa, definitiva, era dele consigo mesmo.

Olhou o chão e viu uma pasta azul. Recordou imediatamente uma vez uma conversa que o velho teve com Tita, o amigo vascaíno. "Queria muito levar isso aqui pra avenida, cara". "É uma tremenda viagem. Mas pode dar certo". Falara isso para ele certa vez: "Um dia, vou contar a minha história de amor com sua mãe na avenida". Lila era outra pessoa incrível, e Pipe a amou loucamente. Só que ela merece um capítulo à parte.

O velho era pra lá de inseguro, e nunca reunira coragem para botar em prática. Quando conseguia algum ímpeto, era atropelado pela necessidade de trocar enredo por patrocínio. Eram tempos de crise, e a Abraço não poderia ainda se dar ao luxo de um tema próprio. E havia tácito compromisso de não deixar jamais a escola regredir. Não avançar até passava, mas dar passo atrás, nem pensar. Quando enfim as finanças alcançavam algum equilíbrio, já dava pra começar a brincar. Mas aquele maldito infarto botara tudo a perder.

O sonho do velho tava todo ali. Abriu a pasta e começou a ler.

(continua)

terça-feira, 29 de outubro de 2013

Abraço fraterno - prelúdio

Lá fora o tempo passava do seu jeito. Cá dentro, pareceu uma eternidade. Era a etapa final da entrega de documentos, que já começara a arquitetar uma revolução na minha vida.

Fora pego de surpresa dias antes com um telegrama. Era a tal convocação, tão esperada dez anos antes. Eu guardara minhas esperanças no canto de uma gaveta da alma, e resolvera tocar em frente. Talvez o banho-maria tivesse facilitado o trabalho dos senhores do destino. 

Na esteira do bilhete premiado, a instrução de uma verdadeira saga por que teria de passar para a regularização. Documentos, atestados, exames médicos. Ela enfim terminaria na sede paulista da empresa, nos estertores da Vila Leopoldina. No meio do caminho, ainda teria de me desligar da clipadora, de poucas boas lembranças. A promessa de realização cobraria um preço: eu teria de deixar São Paulo.

As recepcionistas deixavam o ambiente mais leve, o que me ajudava a desestressar. Ainda temia perder o bonde e tudo se acabar em um nada tão conhecido meu. À esquerda do sofá onde eu estava, a tevê reproduzia a programação. E algo me despertou do transe. A chamada do telejornal trazia uma apresentadora negra. Será que eu vou te encontrar?

Deixei pra lá e finalizei os detalhes burocráticos. A viagem para o Rio estava marcada para dali a três dias. No romper da ponte aérea, levei à bagagem a minha Paulicéia querida, em nuances que transcendiam o cinza, tão completa em minhas recordações. Mas guardava também o sonho de enfim encontrar a felicidade. 

A prova de fogo maior veio já no primeiro dia. Hospedei-me por ora na casa de uns amigos, em Copacabana. Falei por telefone com Bárbara, minha sobrinha, que me perguntou:

- É hoje que você vai voltar?

Foi como se uma tsunami derramasse lágrimas sobre mim. A saudade da pequena seria ainda mais dolorosa do que eu imaginava. Mas precisava vencê-la. Ainda que muito chorasse. O mar se acalmou, mas jamais remediou a lembrança.

Aos poucos, a tempestade de areia dos primeiros momentos foi virando só poeira. Numa das tantas idas à copa para um café, a resposta à minha pergunta: sim, eu encontrei a tal moça negra. Ela conversava sobre trabalho com dois colegas. Passei despercebido e intuí dar pouca bola. Vez por outra, me peguei olhando de soslaio para a redação da tevê à procura dela. Nada que me desviasse de tantos outros focos.

Num dos tantos dias de trabalho, eu a vi ao portão do prédio. Como faço com todos, dei um boa-tarde.

- Oi. Tudo bem?

Foi o mais luminoso sorriso que já recebi na vida. Tudo, então, pareceu fazer sentido, desde a mudança de cidade até os percalços por que passei até aqui. Não que enxergasse alguma coisa a mais em seus sentimentos. Ainda assim, senti até a obrigação de chegar mais perto. Não dava mais para deixá-la de coadjuvante em meus pensamentos. E fui muito bem recebido em seu Face. A comunicação era amistosa, mas ela era excessivamente protocolar. O máximo a que se permitia, ao final, era "um abraço". Guardava distância, e eu precisava respeitar. Descobri, mais adiante, que tínhamos uma trajetória de vida muito parecida.

Falou de lampejos dela numa palestra sede da OAB. E, ao final do discurso, num libelo pela libertação da raça, proferiu Gandhi: "Seja a mudança que você procura". Simpática, recebeu a todos os participantes com tanta doçura que até ficou com a face doendo. O que mais me intrigava é que nunca mencionou o meu nome. Um rapaz, radialista iniciante, pegou o seu contato de Face. Ainda que repleta de amabilidade, emendou, dirigindo-se a mim: "Uso muito pra falar com esse moço aqui."

Pude perceber pungente em mim uma chama cada vez mais intensa, fortalecida pela alta carga de admiração recebida naquele dia. No seguinte, perguntei se tinha chegado bem em casa. Foi então que desci à Terra em segundos. E vi desmoronar todos os planos de aproximação.

"Cheguei, sim. Graças a Deus. Tenha um ótimo fim de semana. Um abraço fraterno"

Abraço fraterno? Custei a entender, mas tive a exata sensação de que era visto como um... irmão. E nada, num processo de conquista, é mais insultante do que isso. A luz que me aquecia a alma começou a apagar, mas ainda tentava encontrar lampejos pra se firmar. Não sabia bem o que pensar. O que vem prevalecendo até aqui é a sensação de ter sido expurgado de todas as esperanças. Como se o tolo que dissera ontem ser seu fã e que tinha trocado de horário só pra vê-la palestrar tivesse sido cruelmente desperto do sonho para o pesadelo. Um "eu te odeio" doeria menos!

Se assim era, decidi me afastar: ocultei-a no bate papo e decidi não mais ver os seus posts. Ainda não sei se a história acabou ou se foi apenas um anticlímax. Até que a resposta se descortine, trato de seguir em frente e encontrar novamente o sentido da nova vida.


quarta-feira, 16 de outubro de 2013

Professor: o esteio da vida

Cantar (e cantar, e cantar) a beleza de ser um eterno aprendiz

A vida é pontuada por seres iluminados que, nem sempre reconhecidos, nos moldam. Seja no literal ou no figurado, mostram os instrumentos para melhor guiar as escolhas. São os professores formais, diplomados, e os "mestres da vida", nossos pais terrenos e espirituais. 

Experimentei a escola pública em seus momentos mais decepcionantes. Valorização em baixa, falta de boas aulas e eterna rotina de greves. Aqui e ali, entretanto, deu pra apreender bons exemplos. 

Regina Célia, por muitos anos vizinha no prédio da Francisco Leitão, foi a mais inspiradora das professoras de português. Estimulava a leitura e o saber de todas as vertentes do idioma propondo atividades que fugiam do lugar comum. Teresa ia pelo mesmo caminho quando ensinava História e Educação Moral e Cívica. Certa vez, quando pediu um trabalho sobre corrupção, pediu para que parte da classe fizesse entrevistas - como se introdução ao Jornalismo fosse. Infelizmente, meu grupo optou pela pesquisa.

No segundo grau (o termo "ensino médio" veio depois) encontrei Luciana, que não se limitou a despejar a Geografia, mas também incitou a pensar. Também tive Oscar, que ensinou como poucos uma matéria espinhosa como Física, a graciosa Elena, de Química, e o espirituoso Fausto, de História. 

Ainda tive tempo de colocar na lista abnegados mestres no cursinho do Núcleo de Consciência Negra na USP. Luis Carlos, de Gramática e História do Brasil, era jornalista por formação e dono de poderoso magnetismo comunicador. Também foi importante para que eu fizesse uma reflexão mais apurada sobre o Jornalismo - eu ainda tão encantado com algumas ilusões me vi jogado a um mundo um pouco mais real. Quase demovi da ideia, mas caminho é caminho.

Na Literatura tive Ester, em seu caleidoscópio de ficção e biografia. Um dia, trouxe alunos de outras plagas que simularam o julgamento de Capitu, a suposta adúltera de Dom Casmurro - ela foi absolvida pelo júri. E em História Geral o performático Ed, que com coragem resumiu dois anos em alguns dias.

A faculdade me proporcionou mais do que um aprendizado acadêmico: compreendi que a vida tem mais faces do que eu imaginava. Mas do que é tradicional eu destaco o hoje notório Clóvis de Barros, em Ética, que faz da irreverência um instrumento para o ensino, Sergio Amadeu e o amplo domínio da Economia e suas variáveis e Antônio Guerreiro em Radiojornalismo.

Mal sabia que Guerreiro me daria os primeiros passos para um destino que me encontraria anos depois. Por obra de um concurso, fui parar em um curso de locução. E a RadiOficina me proporcionou mais três grandes mestres. Cyro Cesar vivia a me dar recomendações, que eu entendia como deficiência - e só depois me dei conta que ele enxergava em mim potencial. Rodrigo Pizcioneri ensinou a "sorrir" com a voz. E Alexandre (me perdoe, mas não me lembro do sobrenome) trouxe, junto com o tal "sorriso" a necessidade de ser natural.

Essa é uma história vale outro post. O que posso dizer é que fui contemplado pelo desenho da vida com uma oportunidade única. Longe da minha cidade, é verdade, mas cheia de possibilidades. Pra chegar até aqui, eu precisei de inúmeros mestres.

Viver também requer outras sabedorias. É por isso que não abro mão dos meus pais, os maiores professores. Da mesma forma, também ensinamos outras pessoas. Somos todos ao mesmo tempo professores e aprendizes. Essa troca com a vida é uma das maiores belezas da existência.

Crédito da foto: Maurício de Souza produções e blog Jacris

quarta-feira, 2 de outubro de 2013

Coisas que deixo pra trás

Sonhou ingênuo que ela iria vê-lo de surpresa.
Era tão desprezado que ela sequer atentou
para seu evidente sentimento
(foto: Google Imagens e Toda Teen)

Olhou o mar de Copacabana com pesar. Deixou para as ondas todo o rescaldo de tristeza de sua última existência.

Conheceu-a recolhida em pretensa timidez. Olhava para o chão, como se pouco conhecesse. No mesmo dia, chorou qual represa rebentada. Pranto que esgotara as energias. Compadeceu e afeiçoou.

Achou-a então no Facebook. Nem parecia a mesma pessoa. Estampava um sorriso festeiro e se acompanhava de enorme caneca de chopp. Pediu pra entrar e foi atendido.

Pareceu viver com a persona no limite. Fazia Economia, mas se exasperava do curso. Só terminaria pra dar alguma satisfação. E no espírito reinava a mais pura curtição; ia à vida louca como se nada mais houvesse. Mas parecia ter bom coração, e até considerou uma ida ao cinema. A afeição virou ternura.

Tudo levava a crer que não daria certo. Mas a carência tem ilusões que a própria razão desconhece. Chamou-a para um improvável evento de música clássica. E não é que ela topou? Só que o sempre impertinente trânsito de São Paulo não permitiu. Outros convites vieram, e ela nunca dava brecha.

Levou porta na cara e até patada. Recuou e, meses depois, tentou novamente. A imaturidade tem motivos que a própria evasão entontece. 

Voltaram a conversar e até a reencontrou ao vivo. Por medo de inconveniência, perdeu a chance de conversar um pouco. 

Empolgado com o encontro, resolveu presenteá-la. Deixou um ovo de Páscoa na portaria de casa; que ela disse ter "amado". Bola dentro! Mas aí, inesperado desapontamento gelou a onda quente da alegria.

Convidou-a mais uma vez. De novo ficou a ver navios: ela disse que viajaria. Dias depois, já de volta, vira uma atualização sua no face: fizera check-in numa lanchonete da Vila Madalena. Depois de um tempo, tirava de letra todas as rejeições... menos essa.

Ainda assim, prepararia uma coisa ainda mais impactante no aniversário. Quebrou a cabeça nuns versos e fez embrulho embalado no sonho. Naquele buquê de negativas estavam todas as vezes que quis entregar o presente. Foi novamente à casa dela e deixou na portaria.

Foi avassalador! A menina disse ter até chorado: "Nunca vou me esquecer". Não se importava mais se ficariam juntos ou não. Deixá-la feliz foi o mais importante.

O tempo passou e ele cruzou a ponte em busca de futuro. Despediu-se falando de um amor desprendido. Ela se desculpou pelas rejeições "por medo" e desejou sucesso.

A última conversa foi a mais devastadora.

Via face, ela se dissera triste por uma desilusão. A pessoa, de quem gostava muito, "não podia dar tanto amor". A emoção tem clarões que a própria lição reconhece. Por mais que fosse importante apenas fazê-la feliz, mantinha ainda aceso ingênuo lampejo. Voltou à infância quando sonhou que ela fosse encontrá-lo de surpresa naquela alameda que dava pra praia.

Mas era tão desprezado que ela sequer atentou para o mais que escancarado sentimento que ele ainda nutria e o jogou com violência em uma humilhante "friendzone" - doeria menos se o odiasse. Óbvio que era mais que do jogo que ela não correspondesse, e sabia disso. Mas precisava fazer aquele desabafo logo pra ele? Pareceu insensível e foi uma evidente indelicadeza. Pior: ficou com a impressão de que ela fez de propósito. Disse da decepção em entrelinhas e a bloqueou no bate-papo. Nunca mais falaria com ela.

Algum tempo depois, com a razão menos provida de sentimento, reviu alguns lances com calma. Falou uma vez de um show que queria ver no Sesc. Ela disse que não curtia, porque os habituès do espaço eram "muito maloka". Em outra oportunidade, classificou como principal propósito do trabalho "ganhar dinheiro e gastar dinheiro". E uma das piores coisas: se ele fez o que fez em seu aniversário, não mereceu dela sequer uma mensagem no face no seu. Não tinha mesmo como sair coelho desse mato.

Tomava o ônibus de volta para o presente. Um novo capítulo da vida estava enfim sendo escrito. A razão tem paixões que a própria existência desconhece.