segunda-feira, 31 de março de 2014

Desafios que a Terra nos impõe

Não sou santo. Longe disso. Às vezes sinto raiva, não raro por pequenezas.

Desta vez, não me deixei levar por ela. Mas foi por pouco.

Ia pela Rua da Assembleia quando um pombo passou rente ao meu rosto e me assustei. Algumas pessoas começaram a rir. Olhei pra trás e só deu pra distinguir um dos babacas.

Era baixo e usava camisa e calça social em cores claras. Parecia trabalhar nos arredores. Por pouco não parti pra cima do vagabundo. Mas segui em frente, pra não provocar consequências desagradáveis.

Não sei se isso é uma idiossincrasia da cidade. Mas é profundamente desrespeitoso achar graça de alguém que nunca se viu na vida.

Não sei se em outra oportunidade terei o mesmo autocontrole.


segunda-feira, 3 de março de 2014

Lições que a vida dá

A vida é mesmo uma escola. O aprendizado volta à medida que não é assimilado.

Passa por isso como convivemos com nossa intempestividade. A sabedoria virtual diz de um minuto de razão que, se jogado fora, é trocado por cem anos de arrependimento. Também tem a ver com o modo como oferecemos o nosso coração. 

Tudo conspirou contra uma comemoração de aniversário. A programação era pouco pretensiosa, mas esperava pelo menos os amigos mais chegados. Ainda assim, houve até quem confirmasse. Preocupei-me com o eventual pouco espaço no local. 

Não rolou. Solidão e filme repetido. A tristeza bateu forte. Houve lamentos, justificativas e pedidos de desculpas. E também recomendações em tom de crítica, porque "nem todo o mundo vê redes sociais". 

Mas é aí que urge não se deixar levar pelas emoções. Em troca delas, uma mensagem escrita com alguma dose de mágoa foi enviada. E aí, a proximidade com uma pessoa de quem se gosta se esvai. Em consulta, uma amiga viu até uma pitada de imaturidade. Por mais adorável que seja, há evidente exagero na definição.

Ainda assim, um deslize, tão imperfeito quanto humano, não precisa ser irreconciliável. 

A moça em questão fez aniversário, e uma pequena homenagem poderia fazer o jogo virar. Presente, cartão em que constava o reconhecimento da intempestividade, e até um poema; embrulhos caprichados, e vamo simbora.

Passavam os dias, e nada. Uma mensagem pedindo pra conversar... e nenhuma resposta. 

É hora de uma dolorosa virada de página. Aprendida com tantas igualmente duras lições. Numa, o mesmo modus operandi - e nenhum convite pra sair aceito. Noutra, a referência vinha em forma de atenção. E, na despedida do local de trabalho, a pessoa, num gesto estupidamente indelicado, recusa-se a dar o telefone. Porque, afinal, o Facebook já era suficiente.

Tudo bem, tudo certo. Grandes gestos de afeto só servem a quem os valoriza; um ato intempestivo não deveria ser suficiente se tornar definitivo. 

Se os versos não voam ao destino, ficam com o mensageiro. Vida que segue e vamos em frente. Com a mesma alegria de sempre.

Crédito da foto: kayracarol.blogspot.com

quarta-feira, 26 de fevereiro de 2014

A Suprema Felicidade

Dois imensos presentes que a vida me deu. Sim, eu chorei. Muito!
Ninguém melhor do que nós sabe o que se passa com o conjunto dos nossos mecanismos do físico e do sentimento. E a sensatez do caminho traçado pela razão nem sempre bate com o que nos vai no coração.

Para encontrar a ascensão que tanto buscava na carreira, tive de me mudar para o Rio de Janeiro. Tudo bate com o que o destino preparou. Além da evolução que me proporcionaria, a partida me traria amadurecimento. Longe de casa, eu teria de sair da casca dos meus pais e viver a minha própria vida. Também deixaria pra trás tantos infortúnios emocionais - entre eles, um infame arranjo amoroso que quase destruiu a minha vida.

O mar de rosas, no entanto, não nos livra de espinhos. Fora de todo o doloroso processo de assentamento à nova terra, ainda havia a distância de uma pessoinha a quem já estava muito acostumado, Bárbara na acepção da palavra. Por mais que reconhecesse todo o afeto que nos aproximava, um gesto singelo seu se tornou um lampejo da Suprema Felicidade.

Ainda me lembro daquela noite, um domingo qualquer de 2007. Bruno e Carla passavam em casa para uma visita que pareceu corriqueira. Foram, na verdade, avisar que haviam encomendado aos céus uma estrelinha, e que haviam despachado a nave para providenciar a viagem. O plano de voo estava num livro entregue a minha mãe: Querida Vovó. Algum tempo depois, soubemos que a empreitada partia da generosidade de um reino pra lá de evoluído. Nos enviaram logo o mais sublime dos seus. A nave chegou duas semanas antes do esperado. E a estrela de nome Bárbara já virara menina.

Eu me tornaria tio, e ficava imaginando como seria essa relação. Ela me ligaria e perguntaria: "Tio, quando você virá aqui me ver? Estou com saudade!" Na minha cabeça, no entanto, a figura do tio nunca era lá muito próxima, por mais que Jairo, por exemplo, tivesse me dado momentos memoráveis, como os jogos do Corinthians e o primeiro desfile de escolas de samba.

A seca profissional permitiu que eu acompanhasse o seu desenvolvimento. Por não saber falar meu nome, chamava-me de "Pi" e, depois, "Pipi". E ela vivia a me viajar a mundos encantados em que eu era príncipe, guerreiro, herói. Na falta de uma criança, era eu o seu companheiro de travessuras. Vira e mexe, quando me via, incluía grito, corrida e abraço numa só alegria. Nunca pensei que alguém fosse me querer tanto.

Nessa caminhada, arrependo-me de algumas coisas. Um dia, quis ver a repercussão de uma importante vitória do Corinthians. E eu não conseguia me desvencilhar dela pra ver. Aí, vou para o quarto e ela corre atrás de mim me chamando. Entra no quarto chupando o dedo; fico com o coração partido, e a pego no colo. Noutro, queria colar figurinhas no álbum da Monster High. E eu, doido pra ir à Academia, pra uma aula qualquer. No seu "tchau", reconheci uma gotinha de tristeza. Não me perdoo.

Já no primeiro dia definitivo na tal Cidade Maravilhosa, vem a primeira prova de fogo. Falo com a velha casa, e minha mãe passa o telefone para ela, que pergunta: "É hoje que você vai voltar?" Tento represar a emoção; em vão. Parecia um nunca mais difícil de definir. Sabia que morar longe dela seria a pior parte, mas a dimensão de tal perda não estava assim tão clara. E o que vem agora são doses divinais de saudade acumulada e história. Da qual um certo fim de semana de fevereiro é um capítulo pra lá de singular:

(Entro no ônibus para a minha primeira ida a São Paulo no ano. Faço questão de ouvir, de novo, a gravação que ela deixou no meu perfil do What'sApp: "Oi, Pipiiiii! Como você tá?"

Chego à casa dos meus pais exausto. Ela fora dormir na casa da Ruth, sua melhor amiga. Como o meu sono é chato e não pega nem em leito de seis horas, tento aproveitar para dormir um pouco. Não consigo!

Ela chega e, claro, gruda em mim: não me vê desde o Natal. Ainda que pregado, faço uma força pra acompanhar o seu ritmo. Que, por sorte minha, não é tão intenso desta vez. Pede pra ver um desenho e, depois, vai para a internet por algum joguinho. Depois, constrói um bonequinho feito de fita crepe. Com carinha e tudo.

Depois, vai com o pai a uma festinha de aniversário. Eu me planejo pra jantar com um amigo. No intervalo entre um e outro, saio pra almoçar, chego atrasado a um evento na Benedito Calixto e volto pra dar um cochilo. Acordo sem noção de tempo e espaço.

Meu sono fica mais satisfeito com a passagem do domingo. Ela liga e diz que vai ao parque com a mãe. Pede para que eu desça para levar um par de tênis.

Volta do parque no meio da tarde, e quer o meu colo. Sobre pra dar oi pra vovó e me leva ao parquinho. Balança como se ganhasse o ar, pousa no trepa-trepa e joga em mim a areia do escorregador.

O céu ameaça chuva, e a pequena quebra a lógica costumeira: dessa vez, é ela que pede pra subir. Aviso que a casa é muito menos ampla para a imaginação. Não se importa, porque o universo dela não vê espaço.

No meio de tanta avalanche criativa, pede cola, papel e lápis. Escreve letras invertidas, desenha um cachorro que mais se parece um urso e descobre novas possibilidades nesse negócio novo que é ler e escrever. Ela pede mais papel e eu, preocupado com um negócio de computador, me esqueço. Ela cobra: "Você não ia me trazer mais papel?"

A poucos minutos da minha partida de volta, bate um certo lamento. Ela pergunta: "Será que você não pode ir embora amanhã?" Explico que não posso, pois chegaria atrasado ao trabalho. Ela enche uma folha de corações, e pede pra eu desenhar alguns também. Num deles, maior, escrevo: "Felipe ama Bárbara" e testo a sua leitura.

Preparo a mala e, depois, tomo banho e faço a barba. É aí que o lampejo da Suprema Felicidade me
derruba de vez.

E ele se concentrou num grande coração em que se lia, com o desalinho natural de quem engatinha na escrita, o maior presente da minha vida: Bárbara ama Felipe. 

Deu-se então o encontro das águas num mar de emoções. O Solimões carregava a tal gota da Suprema Felicidade. O Negro, trazia lamento por morar tão longe dela. Que eu julgara ter conseguido trancar numa jaula. Ambos me derrubam como nunca. Ela volta pra sala sem entender: A avó tenta explicar, mas é toda eufemismo: "O Pipi ficou emocionado". 

Ainda sobra tempo para viajar no espaço e fazer um piquenique com alguns amiguinhos. Parto no último segundo: o Rio me espera. 

Levo comigo um pouco da alma de quem, confesso, não esperava receber um amor tão grande. Deixo na minha querida Terra da Garoa um pouco da minha história. E a vontade de revivê-la um dia.)


quinta-feira, 2 de janeiro de 2014

O mais belo apocalipse

E o mundo acabou
No horizonte de Copacabana

Guarda-se o tempo em que o Saracura
Fez-se Nenê Nasceu em Mangueira e desaguou águia em Madureira
Madalena subiu o morro e encontrou Teresa
E Bela Vista, tão paulista
Fundiu-se com Lapa, toda revista
No Rio de todos os dias
Trago Sampa junto comigo

Em chamas, a selva se apagou
Com ela, o estupor da violência
O sufocar da ganância
Correu no sangue a dor da mesquinharia
E a decepção escapou pelos trilhos tortos

E tudo se chocou
No espocar das estrelas
No chocar dos planetas
Eu não sou mais o mesmo
O colorido vira aquarela
E o cinza vira baú

O meu mundo acabou
E recomeçou


sexta-feira, 20 de dezembro de 2013

Anjos do Rio

Quando troquei Piratininga por Guanabara, trouxe comigo um samburá repleto de sonhos. E ainda tive de lidar com a tristeza de deixar tanta gente querida pra trás. Mas, como diz a sabedoria facebookiana, não se fazem omeletes sem quebrar os ovos.

Na véspera da partida, um Guia me disse: "Agradeça às dificuldades que você vai enfrentar". Confesso ter achado que não seriam tantas assim. Me enganei. Enfrentei solidão, decepção, mesquinharia e ganância. Cheguei a tomar banho de caneca. Senti a pressão de poder não ter onde morar. Felizmente, não aconteceu.

A tormenta, um dia, haveria de acabar. Um raio de sol se avistou no alto da tempestade quando Victor me acompanhou à festa junina da Irmandade, em Guapimirim. Vindo da casa da Mãe querida, eu era recebido pelo Pai de braços abertos. Começava a pontilhar o meu caminho por ali. Luiza, a irmã que nunca tive, já havia me recebido em seu lar.

Ao mesmo tempo, comecei a traçar no trabalho uma história de amizades. Cheguei para substituir um anjo chamado Edileia. Como o destino haveria de pregar peças, Tiago é filho do sambista que me ensinou a amar a estrela-guia de Padre Miguel. E eu, paulistano, invadi o Almanaque... Carioca. Ele conta também com Marina, a conterrânea incansável que substituiu João, o guerreiro. Um salve também aos imprescindíveis Jorge, Marcio e Virgilio.

Numa dessas noites da semana, Zé Carlos me apresentava um projeto de expansão do ensinamento da nossa Fé. Um dia, a Obra leva um baque: perde para a Eternidade um de seus líderes. Corremos para contribuir para o voo de Marcia rumo aos céus. Senti que a luminosidade da Obra tinha infinito reflexo em meu ser. 

E entre tantos anjos a já rondar o espectro da minha jornada, não posso me esquecer de Sheila e Gustavo, que me ofereceram um fim de semana em seu lar. Mas, no domingo à noite, a mais doce das divindades se apresentara. Uma sacerdotisa me cumprimentou como se há muito me conhecesse. Pra minha eterna vergonha, não a reconheci. Pequena no tamanho e gigante na ternura, Rose já figurava na minha lista de amigos. Ela é daquelas pessoas de quem é simplesmente impossível não gostar muito!

Conheci na EBC algumas figuras admiráveis. A belíssima Luciana coroava uma trajetória de muita luta e ousadia. É uma das poucas negras a apresentar telejornais. Na OAB, tive ainda mais apreço pela caminhada dessa valorosa mulher. Também começava a enfrentar turbulência: os funcionários entraram em greve. Não apenas pela manutenção de direitos, mas por um novo jeito de fazer comunicação. 

Eis que vira o meu ano novo particular. Marcia, a maior das supermães, a mais Bárbara das crianças e a grande Ivanilda estão presentes à celebração. Resolvo marcar um encontro com os amigos na semana seguinte. Como o calendário estava pra lá de apertado, a sexta-feira 13 era o único dia realmente disponível. E eu, tão avesso a superstições, nunca senti o azar falar tão alto na minha vida. Falei com as paredes!

Derramei o meu cântaro de mágoa pra quem quisesse ler e ouvir. Senti uma raiva justificada e resolvi me distanciar de algumas pessoas. A semana passou, e o sentimento foi se esvaindo ralo abaixo. Tiago tinha combinado com o Luiz Gustavo de ir, mas chegaram depois que eu já tinha ido embora. Ligia e Raquel se compadeceram; Patricia me presenteou. Muitos se justificaram e pediram desculpas. E os anjos resolveram agir.

Luiza me conta de um encontro que haveria dos egressos da Mocidade IEED em Copacabana, num lugar onde queria comemorar o meu aniversário. Fiquei com a impressão de que "Eles vão me aprontar alguma". Mas fui sem encanar com isso. Papo vai, papo vem, Gugu me distancia da mesa. E, ainda que tarde, Pâmela, Gugu, Luiza, Matheus, Letícia, Camila, Victor, Zé Carlos, Wanderley e Marina me prestam emocionante homenagem pelo tal trigésimo sétimo "ano novo".

É a mostra de que, se Deus não correspondeu às minhas expectativas, é porque tinha planos melhores pra mim. Foi Ele quem colocou todos esses anjos na minha vida. Obrigado a todos vocês. Nunca vou me esquecer disso!

domingo, 24 de novembro de 2013

Coisas que deixo pra trás - Parte 2

Essa é da série "coisas que devo deixar pra trás"

Muitos anos atrás, houve na escola um programa pra incentivo à leitura. Cada classe da quinta série lia um livro diferente, e eles seriam trocados. Ao final de um prazo, seriam doados à biblioteca.

Estava na mochila com "A montanha encantada", de um colega de classe. Vasculhando a mochila, minha mãe se escandalizou com um livro que não era meu.

Depois disso, ela e meu pai me submeteram a um duríssimo interrogatório. Estavam absurdamente indignados com aquilo. Eu, amedrontado e sem entender o porquê de tanta hostilidade, não consegui explicar a situação. E prometi devolver o livro no dia seguinte.

Deixei-o na parte de baixo da carteira do meu colega, na surdina. Depois, inventei um diálogo que não existiu e dei o assunto por encerrado. Ainda assim, eles desconfiaram da atitude.

Anos depois, intuí que eles acharam que eu roubei o livro. É ultrajante descobrir que os seus próprios pais desconfiaram um dia de sua integridade. E te tiram por ladrão.


quarta-feira, 6 de novembro de 2013

Abraço fraterno - Iguá e Pierê

Eram os tempos da Pangéia. África via um dos seus cumprir o que Olorun e Tupã decidiram em conjunto. Aquele que breve seria Brasil ganharia o mundo e acrescentaria novas diretrizes ao seu destino. 

O espírito da mãe querida calou fundo na alma do menino. Numa de suas partículas, a tribo Jacutinga festejava a chegada de mais uma princesa, batizada Iguá. Era em um período de baixa prosperidade. Sofria os efeitos da guerra da era anterior, que dizimou considerável parcela da população masculina. 

Iguá pisava n'areia ardendo em pobreza, mas sem perder de vista a dignidade. Banhada nas águas da coragem, sentiu que os percalços não a poderiam esmorecer. Implorou aos céus o esclarecimento. O sol mostrou o caminho da cruz. 

A alguns quilômetros de distância, outra partícula luzia: em um planalto conhecido como Piratininga, à beira do rio derramado, aquela tribo tupi também celebrava a vida: nascia o filho dos pajés. Chamar-se-ia Pierê. Naquele dia, sinais de fumaça evocavam guerreiros que prenunciavam a missão do pequeno: setenta mil valentes tomavam a aldeia Maracanã e venciam difícil guerra contra os temidos tricolores de Guanabara.

Pierê trouxe dos céus arte e sabedoria, mas a bravura deveria buscar em terra. Lutaria com o mundo e consigo mesmo durante toda a existência.

Iguá fizera história por árdua jornada. Conheceu sábios e se fez reconhecer. Participou de uma revolução em que novas nuances começavam a pigmentar antigos paradigmas. Veio à Guanabara, viu a história acontecer e venceu a resistência. Virou, ela mesma, referência.

Em Piratininga, Pierê tinha a perseverança posta à prova. Desventura do coração, que colocava em xeque toda a esperança de felicidade. Destino entregue nas mãos de alguém por quem não tinha amor que também, no fundo, nunca o amara. Teria trazido na bagagem poucas perspectivas de amor. Tudo ilusão das trevas.

Suportaria por anos a ira das falsas visões. Acuado, o pobre teve um lance de extrema loucura: jogou-se ao derramado no afã de morrer. Mas, em vez de morte, as águas lhe deram novamente a vida, e o livraram da maldição. A luta permanecia, encarnada que só.

Do lado de lá ela seguia trajetória vitoriosa. Já reconhecida, atraía a admiração de tantas partículas Afroíndias de Brasil às quais clamava por propagar o sangue de África.

Até que, pelas mãos de Tupã e Olorun, veio a Pierê a mais sublime das jornadas. Perdeu os sentidos e deixou o corpo. Na viagem astral, encontrara uma linda moça de pele curtida como a sua. Será que vou te encontrar?

Acordara pássaro, que deveria voar a Guanabara. Ao chegar, já de volta à forma humana, suspirou de saudade da curumim que nos anos de bravura lhe dera alentos de fantasia. Ainda assim, precisava prosseguir. Sentiu a alma tremer quando viu em terra a moça do sonho se materializar.

Seus olhares só se encontraram depois. Quando aconteceu, ela sorriu como ele nunca viu. Sentiu então que toda a desventura em Piratininga valera a pena. Aquele encontro haveria de ter algum significado, e o precisava desvendar. Seria um lampejo da felicidade que tanto almejara? Tudo pareceu desmoronar quando, numa despedida qualquer, ela lhe mandara um "abraço fraterno".

Desprezado por Iguá, Pierê sentou à beira do mar e chorou. E nele atirou o sonho daquele amor que jamais viraria realidade, e seguiu com os demais lances da nova vida. Acreditou enfim ali ter fincado raiz. Mal sabia, no entanto, que deveria retornar à amada Piratininga. Não sem antes desposar a bela Romi.

De tanto vidrar em Iguá, Pierê pouco percebia a jovem: não achava correto cortejá-la, posto que era filha de uma tribo com quem os tupis seus ancestrais não se davam lá muito bem. Um dia, já refeito da desilusão, atentou para o lindo sorriso de Romi. Decidiu que as diferenças não fariam diferença, e permitiu que o coração forjasse um novo amor.

Ele floresceu como pouco se esperava. Pierê aceitaria se nunca mais voltasse à terra natal, se isso infelicitasse Romi. Mas ela queria ir, pois Guanabara a povoara de más lembranças.

Ao longo dos séculos, Pierê não cansava de contar aos bisnetos e descendentes a saga de sucesso e amor, que só valeria a pena porque povoada de pedras e espinhos. Olhava com ternura àquela mulher de linda alma, que enfim lhe dera a felicidade tão difícil de ser alcançada.

Uma ponta de melancolia, no entanto, calava em seus olhos ao lembrar do triste fim de Iguá. Jacutingas e aimorés entraram em guerra, e os inimigos a fizeram prisioneira. Antes que a trégua chegasse, eles já a haviam torturado e matado. Rezou para que a alma da bela mulher encontrasse paz. Afinal, a admiração por ela jamais se apagou.

O jovem Brasil caminha devagar ao amadurecimento. Os herdeiros de África guiavam sua alma a um novo conceito de igualdade. Ainda haveria muito por aproximar. Mas o caminho era irreversível.

(crédito da foto: Brasil Cultura)