Aquela semana amanheceu diferente. Em vez de acordar ao som da tevê, programada para ligar automaticamente às sete, era o telefone que tocava. Às seis e meia. Demonizei até a décima geração do infeliz que me privaria de meia hora de sono.
Atendi com proposital voz enrolada. Quem sabe o cidadão se tocasse. Era a Fernanda. Tadinha! Era um doce de pessoa. Ligou para me fazer um convite: ir à Sala São Paulo para um concerto da Orquestra Sinfônica do Estado de São Paulo.
Me dissera que os ingressos eram um acalanto em tempos de realidade tão sombria. Recentemente, trabalhara das seis até sabe-deus na esperança de alcançar a gerência, vaga desde que Amélia aceitou mudar-se para Londres. Mas Barros, o chefe, não cumpriu a promessa de prestigiar os pratas da casa. Trouxe um fedelho mal saído da faculdade.
Os pais, então, eram de uma bipolaridade insuportável. De dia, Romeu e Julieta. À noite, goiabada e queijo não se misturavam. Não contentes, faziam pressão para que logo se casasse. Ah, as coisas do coração! Minha amiga não abria nada sobre isso. Tenho lá as minhas especulações sobre o porquê te tanto mistério, mas prefiro não dizer, para respeitar a sua privacidade. O que posso falar com absoluta certeza é que não se sentia livre. Ela mesma me disse isso. E não se alongou no assunto.
A última vez que estive num concerto da Osesp, lamentei descer do mundo a que aquelas sinfonias me levaram. Lembro-me de que estava no mezanino, um pouco acima dos músicos. Um trompetista, negro, fazia os últimos ajustes no instrumento. O mesmo faziam violistas e violoncelistas. Mas tinham um ritual a seguir. Todos aqueles arquitetos de sons entrariam juntos. Precediam o spalla. Se banda de rock fosse - sacrilégio? - é como se fizesse o papel do guitarrista de solo. E então vinha o maestro. Carlos Gomes e o Guarani do amor transcendente eram os artífices de um passeio pelo mundo das idéias. Tchaikovski lá nos mantinha e Beethoven soava como um lindo réquiem a nos transportar de volta ao mundo sensível.
Definitivamente, Fernanda precisava daquela viagem. Andava ensimesmada demais e irritadiça ao extremo. Disse um dia se sentir escrava. Não entendi, mas ela, pra variar, não quis explicar! Pensou até em morte. Amigos nossos faziam cara feia e se afastavam. Eu apenas compreendia, não por pena - porque ela não merecia tão mesquinho sentimento. Mas por amor, visto que ela via a vida atravessar-lhe a alma e não sabia como se livrar de um labirinto cada vez mais sufocante. Parecia sentir-se um pouco mais aliviada em minha presença.
Encontramo-nos nas Clínicas. Como pouco se passava das sete, o rush de São Paulo ainda dava fortes suspiros de tormento. Fila para comprar passagens, para carregar o bilhete único, para passar a catraca. E, na escada rolante de acesso à plataforma, não havia ar que aliviasse o calor. Eu, no meu exagero, preferi caprichar no terno preto e camisa branca. Por instantes, me senti derreter. A Fê me olhava e disfarçava a tristeza com um sorriso.
- Que foi?
- Nada de mais. Só espero ter a chance de despir a realidade. Nem que seja por um instante.
Chegamos ao Paraíso em instantes. Éramos apenas gotas de pessoas num rio que desaguava para cima. E não se importava com as pedras no caminho. E o mar que morreria na Sé, àquela hora, já estava em maré baixa.
A Luz do presente se conectava com o passado. A antiga estação teria sido praticamente trazida em caixas por ingleses. Erguida no século XIX, ela servia como ponto de chegada e partida do café para o porto de Santos. Outros produtos de menor importância também aportavam por lá. Fora devastada pelo fogo nos anos 40 e, assim, também se viu vitimada pela decadência do transporte ferroviário. Só se revitalizou anos depois, para se tornar entreposto de um conjunto cultural.
Atravessamos a linda estação olhando, lá embaixo, uns poucos gatos pingados esperando o trem chegar. Barra Funda, Rio Grande da Serra... Do outro lado da ponte, uma estranha neblina transformava tudo em uma longínqua noite vinda das minhas lembranças. Embarcaria no Trem de Prata com minha mãe e uns amigos rumo à Central do Brasil, no Rio. De lá, partiria para a região serrana. Do lado de fora, meu irmão, ainda pequeno, se despedia eufórico - não poderia ir. Na época, nem liguei. Mas hoje, me aperta o coração ter partido para aquela viagem sem ele. Enquanto o trem deixava a estação, ele e meu pai começavam a voltar pra casa.
- Alô! Tem alguém aí?
A Fê estalara os dedos pra me tirar do túnel do tempo. Eu odiava aquilo, mas dessa vez, reconheço, ela fez bem. Apesar de bela, aquela região inspirava atenção redobrada. A passos largos, chegamos à Estação que dá nome ao homem que seria presidente do Brasil não fosse a revolução de 30: Julio Prestes. O prédio à Luis XVI impunha-se imponente sobre o Largo General Osório. Lá dentro, a preservação de ares seculares contrasta com a habitual voracidade paulistana pelo novo.
A Fê parecia mais lívida. Disse que conseguira deixar a tenebrosa roupagem real do lado de fora, e só queria viver intensamente aquele momento de fantasia.
Como estava cedo, aproveitamos para conhecer melhor aquele lindo lugar. À direita da entrada, uma pequena loja vendia livros, CDs e doces finos. Me ative por instantes a um guia sobre a história da música erudita. À esquerda, o restaurante irradiava estilo, mas cobrava caro. O chão do corredor ao lado do restaurante parecia nos transformar em peças de um jogo de xadrez. Ele dava para o elevador, em frente, e para a sala de concertos, à direita.
Uma trombeta zombeteira anunciava o apocalipse daquilo que ainda éramos. Parecia dizer que não seríamos os mesmos depois daquilo. Entramos e nos sentamos a alguma distância do palco. Naquele dia, não havia a tradicional separação por lugares. E o mezanino se encontrava tristemente fechado. Vazio. Pobres daqueles que perderiam aquilo.
Aquela madeira bege clara parecia brilhar discretamente. Mas é quando os músicos chegam é que aquela luz ofusca, mesmo. Entramos em irreversível estado de hipnose.
O chileno Victor Hugo Toro entrava para comandar a viagem. À Abertura, de Wagner, uma essência em tons azulados emergia a platéia qual onda devastadora. O alemão fazia a realidade ficar para trás. Uma transcendência coletiva, mas ao mesmo tempo solitária. Tamanha fora a minha compenetração que mal conseguia divisar a Fê, que estava ao meu lado. Possivelmente, experimentando as mesmas sensações.
Com Suíte Brasileira, fomos apresentados a Alexandre Levy. O jovem compositor paulistano e seu som tão verde-amarelamente erudito nos introduziu ao mundo das idéias. A quarta parte, Samba, eterizou por inteiro. Só mesmo um brasileiro para fazer o clássico vestir-se de popular e permanecer autêntico. Levy deixou-nos com Charles Gounod em Valsa, e se despediu.
Coube a Maurice Ravel o réquiem da volta pra casa. No caminho, o seu Bolero começava suave e longínquo, culminava soberano... e trazia de volta algumas lembranças. Uma cerimônia religiosa em louvor a Cosme e Damião. Algumas mulheres de minha vida dançavam para a divindade dirigente da solenidade. Mas a imagem sumiu subitamente.
No retornar ao cárcere terreno, ainda carregava a essência daquela viagem. Olhei para a Fê e senti que, de alguma forma, nos conectamos. Tive a certeza de que ela passou pelas mesmas coisas. Perguntei:
- Preparada para revestir-se novamente de realidade?
- Sim. Mas agora, essa roupa me parece muito mais leve.
Um comentário:
My god, cada vez mais não esquecendo dos mínimos detalhes, gostei bastante, mistura ficção com uma boa dose bem real. Adoro musica Clássica, Gustav Mahler, Sebastian Bach, Chopin, Shubert e muitos outros, música que para muitos é loucura, se aprofundar mais.
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