quarta-feira, 6 de novembro de 2013

Abraço fraterno - Iguá e Pierê

Eram os tempos da Pangéia. África via um dos seus cumprir o que Olorun e Tupã decidiram em conjunto. Aquele que breve seria Brasil ganharia o mundo e acrescentaria novas diretrizes ao seu destino. 

O espírito da mãe querida calou fundo na alma do menino. Numa de suas partículas, a tribo Jacutinga festejava a chegada de mais uma princesa, batizada Iguá. Era em um período de baixa prosperidade. Sofria os efeitos da guerra da era anterior, que dizimou considerável parcela da população masculina. 

Iguá pisava n'areia ardendo em pobreza, mas sem perder de vista a dignidade. Banhada nas águas da coragem, sentiu que os percalços não a poderiam esmorecer. Implorou aos céus o esclarecimento. O sol mostrou o caminho da cruz. 

A alguns quilômetros de distância, outra partícula luzia: em um planalto conhecido como Piratininga, à beira do rio derramado, aquela tribo tupi também celebrava a vida: nascia o filho dos pajés. Chamar-se-ia Pierê. Naquele dia, sinais de fumaça evocavam guerreiros que prenunciavam a missão do pequeno: setenta mil valentes tomavam a aldeia Maracanã e venciam difícil guerra contra os temidos tricolores de Guanabara.

Pierê trouxe dos céus arte e sabedoria, mas a bravura deveria buscar em terra. Lutaria com o mundo e consigo mesmo durante toda a existência.

Iguá fizera história por árdua jornada. Conheceu sábios e se fez reconhecer. Participou de uma revolução em que novas nuances começavam a pigmentar antigos paradigmas. Veio à Guanabara, viu a história acontecer e venceu a resistência. Virou, ela mesma, referência.

Em Piratininga, Pierê tinha a perseverança posta à prova. Desventura do coração, que colocava em xeque toda a esperança de felicidade. Destino entregue nas mãos de alguém por quem não tinha amor que também, no fundo, nunca o amara. Teria trazido na bagagem poucas perspectivas de amor. Tudo ilusão das trevas.

Suportaria por anos a ira das falsas visões. Acuado, o pobre teve um lance de extrema loucura: jogou-se ao derramado no afã de morrer. Mas, em vez de morte, as águas lhe deram novamente a vida, e o livraram da maldição. A luta permanecia, encarnada que só.

Do lado de lá ela seguia trajetória vitoriosa. Já reconhecida, atraía a admiração de tantas partículas Afroíndias de Brasil às quais clamava por propagar o sangue de África.

Até que, pelas mãos de Tupã e Olorun, veio a Pierê a mais sublime das jornadas. Perdeu os sentidos e deixou o corpo. Na viagem astral, encontrara uma linda moça de pele curtida como a sua. Será que vou te encontrar?

Acordara pássaro, que deveria voar a Guanabara. Ao chegar, já de volta à forma humana, suspirou de saudade da curumim que nos anos de bravura lhe dera alentos de fantasia. Ainda assim, precisava prosseguir. Sentiu a alma tremer quando viu em terra a moça do sonho se materializar.

Seus olhares só se encontraram depois. Quando aconteceu, ela sorriu como ele nunca viu. Sentiu então que toda a desventura em Piratininga valera a pena. Aquele encontro haveria de ter algum significado, e o precisava desvendar. Seria um lampejo da felicidade que tanto almejara? Tudo pareceu desmoronar quando, numa despedida qualquer, ela lhe mandara um "abraço fraterno".

Desprezado por Iguá, Pierê sentou à beira do mar e chorou. E nele atirou o sonho daquele amor que jamais viraria realidade, e seguiu com os demais lances da nova vida. Acreditou enfim ali ter fincado raiz. Mal sabia, no entanto, que deveria retornar à amada Piratininga. Não sem antes desposar a bela Romi.

De tanto vidrar em Iguá, Pierê pouco percebia a jovem: não achava correto cortejá-la, posto que era filha de uma tribo com quem os tupis seus ancestrais não se davam lá muito bem. Um dia, já refeito da desilusão, atentou para o lindo sorriso de Romi. Decidiu que as diferenças não fariam diferença, e permitiu que o coração forjasse um novo amor.

Ele floresceu como pouco se esperava. Pierê aceitaria se nunca mais voltasse à terra natal, se isso infelicitasse Romi. Mas ela queria ir, pois Guanabara a povoara de más lembranças.

Ao longo dos séculos, Pierê não cansava de contar aos bisnetos e descendentes a saga de sucesso e amor, que só valeria a pena porque povoada de pedras e espinhos. Olhava com ternura àquela mulher de linda alma, que enfim lhe dera a felicidade tão difícil de ser alcançada.

Uma ponta de melancolia, no entanto, calava em seus olhos ao lembrar do triste fim de Iguá. Jacutingas e aimorés entraram em guerra, e os inimigos a fizeram prisioneira. Antes que a trégua chegasse, eles já a haviam torturado e matado. Rezou para que a alma da bela mulher encontrasse paz. Afinal, a admiração por ela jamais se apagou.

O jovem Brasil caminha devagar ao amadurecimento. Os herdeiros de África guiavam sua alma a um novo conceito de igualdade. Ainda haveria muito por aproximar. Mas o caminho era irreversível.

(crédito da foto: Brasil Cultura)

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