segunda-feira, 8 de fevereiro de 2010

A reconstrução de um país

Liberto permanece o pensamento
Ele foi o meu alento quando o corpo foi prisão

O chefe da segurança do presidente aguardava os reforços que havia pedido. Desagradável surpresa: os homens eram brancos, antigos artífices da segregação. E estavam ali por ordem do Madiba. Na reunião do partido, os novos donos do poder votavam por mudanças. Exigiam mudança de hino e o fim da alcunha "Springboks" para o time de rúgbi nacional.

Ele então ruma à sede e pede a reconsideração. Enquanto padecera na prisão, estudara o inimigo em todas as suas nuances. Aprendera até mesmo a sua língua. Avisou aos seus, porém, que assumira o comando com o intuito de unificar o país. Os africâneres eram, portanto, compatriotas. Não mais inimigos. Se tirasse isso deles, daria início a um processo de vingança, que segregaria o país para sempre.

A alma de Nelson Mandela se revelou em toda a sua grandeza em Invictus. Ainda com a ferida marcada por 27 anos de cárcere pela luta contra o apartheid, assumiu a reconciliação da África do Sul com o futuro como uma missão. Ainda que contrariasse aos seus, fez mais do que manter os Springboks: tornou-o um símbolo para a jornada, mesmo tendo apenas um negro no time.

Sede do mundial de rúgbi, a África do Sul estava longe da elite do esporte. Mas Mandela queria a vitória como instrumento para a missão. Então, chamou para um chá o capitão da equipe, François Pienaar. O encontro foi um divisor de águas na vida do atleta. "Nunca conheci ninguém como ele."

A evolução do time se torna muito mais emocional do que técnica. É na base da inspiração que os Springboks encontram forças para encarar o torneio. Ensinam rúgbi a moradores de uma favela e visitam o presídio onde Mandela ficou preso. Aos poucos, os negros vão se juntando na torcida daqueles que outrora os oprimiram. Os espíritos, tão separados, vão se unificando.

Não há palavra suficiente para descrever a personificação de Morgan Freeman. Transporta para a ficção toda a singularidade de Nelson Mandela. Só um homem de tamanha grandeza para se mostrar dominador de todos os sentidos e sentimentos e opressor do ressentimento em prol de um bem maior. Em entrevista a Veja, revelou fazer a incorporação do personagem de maneira intuitiva. Não poderia fazer melhor. Em sua personalidade singular, o governante parecia desligado. Mas nada lhe escapava. Disse um de seus guarda-costas: "No tempo de (Frederic) De Klerk (antecessor de Mandela), eu aprendi a ser invisível. Para Mandela, ninguém é invisível."

Se não sobrepõe o brilho do protagonista, Matt Damon não deixa de emitir a sua luz própria. Faz de Pienaar não apenas um porta-voz das aspirações de Mandela, mas como parte consciente dela. Antes do encontro com o líder, pediu aos seus companheiros que bebessem uma lata de cerveja para provar o amargo sabor da derrota. "Para que lembremos dele e não os sintamos nunca mais."

Tantos anos de separação não se resolvem em alguns anos. Algumas refregas ainda há por resolver. Mas a competição foi o início da reconstrução da África do Sul como país. Sob Clint Eastwood, Invictus retrata com maestria e sem rodeios o início desse processo.

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