Parecia um daqueles fins se semana cheios de mormaço. O tempo virou e um resfriado daqueles caiu em mim como bigorna. Não virou gripe sabe-se lá por que, mas me impediu de ver o samba passar na Cantareira. Barba e Jelleya, velhos conhecidos dos áureos tempos de Sasp, disputavam mais uma final de samba. Já os tinha visto perder na Tom Maior, e não pude presenciar glorioso triunfo na Acadêmicos do Tucuruvi.
Com tristeza vi o vento frio de sábado fechar-me as portas enquanto eu brigava em vão contra nariz, espirro, coriza e quetais. Em permanente reflexão sobre os tempos modernos, revi as fotos de duas semanas atrás. Numa delas, quase não me reconheci. Lembrava-me de cantar o maravilhoso "sai da frente" e de posar para a câmera numa irreverência pra lá de incomum na minha persona que pende mais para o reservado.
Como integrante de uma comunidade espiritualista que se recolhe no Carnaval, me vi cobrado pelo paradoxo. Depois de muito refletir, deixei lá a foto. Eles disseram que "fui um monstro" naquele dia. Concluí que o valor da amizade e da plenitude poética que a composição me incutiu valia um pequeno desvio de rota.
O domingo me reservaria outros horizontes. Refúgio dos meus preferidos, a Sala São Paulo novamente reservava a Bachiana Filarmônica. Ainda me recordava as maravilhosas danças húngaras de Brahms, quando quem se revelaria daquela vez seria Ravel, que se orgulhava de ser a sua música uma expressão muito mais de sentimento que de intelecto.
No começo, o Don Quixote de Francisco Campos Neto pareceu dobrar triste ante Dulcineia. João Carlos Martins viajava na mesma onda, porque Hebe Camargo se fora - levando com ela cinco décadas de história televisiva. Dedicou a ela "Pavane pour une infante dèfunte", o réquiem para uma criança morta. Mas, mais teimoso que heroico, em suas próprias palavras o bravo maestro mudava o rumo do que era certo. O que era preto foi aos poucos tornando cinza.
"Rapsódia espanhola" e "As portas de Kiev" começavam a virar o jogo e encher a alma de uma emoção mais colorida que cinzenta. E o conhecidíssimo "Bolero" retomava em microcosmo todas aquelas sensações e irrompia como sempre em sua verve memorável - e trazendo também uma recordação do passado, em que ele fazia pano de fundo para um número artístico de Cosme e Damião.
Como sempre, Martins trouxera surpresa, e nela uma revelação. Viraria a sua vida cinema pelas mãos dos Barreto. Marcelo Serrado, cujo talento viajou entre os extremos Crô e Tonico Bastos, viverá o maestro. Redescobrindo o pianista Humberto, de O Dono do Mundo, Serrado tira da cartola um prelúdio de Bach. Libertango sela a rapsódia já pra lá de reluzente à volta da Estação de trem transformada em sala de espetáculos.
A arte em todas as nuances banha a vida. A popular deu vez dessa vez à chamada erudita. Cada uma a seu modo, enche a alma de vida.
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