quinta-feira, 26 de março de 2009

A menina dos olhos

E, em meio a Mozart, desapareceu.

No intervalo, percorri toda a sala em busca de uma pista. Aquela antiga estação ferroviária respirava ares de outrora. Abraçava a Estrada de Ferro Sorocabana, mas nascera tarde: na São Paulo emergente dos anos 30, o transporte ferroviário começava a perder espaço para os carros. Eu me misturava no meio daqueles senhores e senhoras já amareladas pelo tempo. No rufar da trobeta que anunciava o reinício do concerto, eu retornava ao presente. Acho que não a verei mais.

Desembarquei na Luz às oito e quinze, pronto para uma nova transcendência. Como da última vez, peguei as vias de acesso aos trens. Ali, tudo virava um labirinto Francisco Morato, Guaianazes. Desci no local que indicava o Museu da Língua Portuguesa. Saí no encontro da Rua Mauá com a Avenida Cásper Líbero. E o Largo General Osório trazia de volta peças do meu passado. Meu pai trabalhou por muitos anos no posto de saúde da Prates. Na época, era a sede do antigo INAMPS. Quantas vezes, menino, me encontrei com ele para almoçarmos nos restaurantes do Bom Retiro. O bairro tem valor também por outro motivo: em 1910, sob a luz de um lampião, surgiria um certo alvinegro.

Ao descortinar o Julio Prestes, a degradação e a modernidade andavam lado a lado. Homens da rua dormiam sob o luar do edifício revitalizado. A entrada se concentrou em um único lugar: ao lado do estacionamento, que dá de frente para a Duque de Caxias. Foi tão confuso que quase invadi o espaço destinado aos músicos. Quando me encontrei, consegui entrar na sala. Vi um número no ingresso, mas não batia com a identidade das cadeiras. E as trombetas ressoaram.

Os músicos começavam a tomar posição. Ela estava postada ao lado da porta. Fui perguntar se havia lugares. "Não. É livre. Pode sentar em qualquer lugar." O spalla já recebia a sua cota de aplausos. O maestro saudava os músicos e o público.

Eu mal prestava atenção àquele ritual. Cada uma daquelas palavras soavam em mim como melodia. Pulsei. Perdi o chão. Tremi. Tanta doçura concentrada exalava até mesmo daqueles olhos oblíquos. Ah, Capitu. Estavas lá, não é? Pareceu que vieste direto do Engenho Velho, e Bento a dissecava com todo aquele ciúme. Sinto, cigana. Você não chega aos pés dela.

Cada passo da minha respiração ainda tentava dissolver aquela sensação. Era ao mesmo tempo inebriante e perturbadora. Tive medo. Como deveria reagir àquilo tudo? Era um Frazier recém golpeado por Ali. Ainda assim, tomei a coragem de saair das cordas. Tudo o que se seguiu deve ter durado uns trinta segundos, mas pareceu uma eternidade. E então encarei aqueles olhos. Ela teve o disparate de sorrir. Joe foi a nocaute definitivamente. Falei do clima e iria perguntar o seu nome, mas outros convidados requisitavam seus serviços.

A maravilhosa sinfonia osespiana traduziu toda aquela cruzada. Encantei, como sempre, mas não transcendi como da outra vez. Tudo parecia fazer pouco sentido. Eu só pensava naqueles olhos. Ela estava lá, sentada atrás da plateia. E, em meio a Mozart, desapareceu. No intervalo, percorri aquele saguão em busca de uma pista. Ah, aqueles olhos... Andei tanto que cheguei à livraria. Não a encontrei. Terá sido uma abdução? Uma volta no tempo? Aqueles senhores e senhoras amarelados pelo tempo misturavam-se aos seres de agora.

Soou a trombeta, e o presente se impôs. Só me restou torcer para que Tchaikovski a trouxesse de volta, mas nem mesmo ele pôde me ajudar. A deusa retornara ao seu Olimpo. E tudo o que ficou foi essência. Acho que jamais a verei novamente.

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