terça-feira, 29 de outubro de 2013

Abraço fraterno - prelúdio

Lá fora o tempo passava do seu jeito. Cá dentro, pareceu uma eternidade. Era a etapa final da entrega de documentos, que já começara a arquitetar uma revolução na minha vida.

Fora pego de surpresa dias antes com um telegrama. Era a tal convocação, tão esperada dez anos antes. Eu guardara minhas esperanças no canto de uma gaveta da alma, e resolvera tocar em frente. Talvez o banho-maria tivesse facilitado o trabalho dos senhores do destino. 

Na esteira do bilhete premiado, a instrução de uma verdadeira saga por que teria de passar para a regularização. Documentos, atestados, exames médicos. Ela enfim terminaria na sede paulista da empresa, nos estertores da Vila Leopoldina. No meio do caminho, ainda teria de me desligar da clipadora, de poucas boas lembranças. A promessa de realização cobraria um preço: eu teria de deixar São Paulo.

As recepcionistas deixavam o ambiente mais leve, o que me ajudava a desestressar. Ainda temia perder o bonde e tudo se acabar em um nada tão conhecido meu. À esquerda do sofá onde eu estava, a tevê reproduzia a programação. E algo me despertou do transe. A chamada do telejornal trazia uma apresentadora negra. Será que eu vou te encontrar?

Deixei pra lá e finalizei os detalhes burocráticos. A viagem para o Rio estava marcada para dali a três dias. No romper da ponte aérea, levei à bagagem a minha Paulicéia querida, em nuances que transcendiam o cinza, tão completa em minhas recordações. Mas guardava também o sonho de enfim encontrar a felicidade. 

A prova de fogo maior veio já no primeiro dia. Hospedei-me por ora na casa de uns amigos, em Copacabana. Falei por telefone com Bárbara, minha sobrinha, que me perguntou:

- É hoje que você vai voltar?

Foi como se uma tsunami derramasse lágrimas sobre mim. A saudade da pequena seria ainda mais dolorosa do que eu imaginava. Mas precisava vencê-la. Ainda que muito chorasse. O mar se acalmou, mas jamais remediou a lembrança.

Aos poucos, a tempestade de areia dos primeiros momentos foi virando só poeira. Numa das tantas idas à copa para um café, a resposta à minha pergunta: sim, eu encontrei a tal moça negra. Ela conversava sobre trabalho com dois colegas. Passei despercebido e intuí dar pouca bola. Vez por outra, me peguei olhando de soslaio para a redação da tevê à procura dela. Nada que me desviasse de tantos outros focos.

Num dos tantos dias de trabalho, eu a vi ao portão do prédio. Como faço com todos, dei um boa-tarde.

- Oi. Tudo bem?

Foi o mais luminoso sorriso que já recebi na vida. Tudo, então, pareceu fazer sentido, desde a mudança de cidade até os percalços por que passei até aqui. Não que enxergasse alguma coisa a mais em seus sentimentos. Ainda assim, senti até a obrigação de chegar mais perto. Não dava mais para deixá-la de coadjuvante em meus pensamentos. E fui muito bem recebido em seu Face. A comunicação era amistosa, mas ela era excessivamente protocolar. O máximo a que se permitia, ao final, era "um abraço". Guardava distância, e eu precisava respeitar. Descobri, mais adiante, que tínhamos uma trajetória de vida muito parecida.

Falou de lampejos dela numa palestra sede da OAB. E, ao final do discurso, num libelo pela libertação da raça, proferiu Gandhi: "Seja a mudança que você procura". Simpática, recebeu a todos os participantes com tanta doçura que até ficou com a face doendo. O que mais me intrigava é que nunca mencionou o meu nome. Um rapaz, radialista iniciante, pegou o seu contato de Face. Ainda que repleta de amabilidade, emendou, dirigindo-se a mim: "Uso muito pra falar com esse moço aqui."

Pude perceber pungente em mim uma chama cada vez mais intensa, fortalecida pela alta carga de admiração recebida naquele dia. No seguinte, perguntei se tinha chegado bem em casa. Foi então que desci à Terra em segundos. E vi desmoronar todos os planos de aproximação.

"Cheguei, sim. Graças a Deus. Tenha um ótimo fim de semana. Um abraço fraterno"

Abraço fraterno? Custei a entender, mas tive a exata sensação de que era visto como um... irmão. E nada, num processo de conquista, é mais insultante do que isso. A luz que me aquecia a alma começou a apagar, mas ainda tentava encontrar lampejos pra se firmar. Não sabia bem o que pensar. O que vem prevalecendo até aqui é a sensação de ter sido expurgado de todas as esperanças. Como se o tolo que dissera ontem ser seu fã e que tinha trocado de horário só pra vê-la palestrar tivesse sido cruelmente desperto do sonho para o pesadelo. Um "eu te odeio" doeria menos!

Se assim era, decidi me afastar: ocultei-a no bate papo e decidi não mais ver os seus posts. Ainda não sei se a história acabou ou se foi apenas um anticlímax. Até que a resposta se descortine, trato de seguir em frente e encontrar novamente o sentido da nova vida.


Um comentário:

ROSE CANABAL disse...

Sensacional Felipe!!!!!
Lembrei-me de Martha Medeiros e da Clarisse Lispector em alguns trechos da sua crônica, na sua forma de se expressar....
Parabéns!!! Vc escreve MUITO bem....e sabe passar emoção e sentimento nas suas palavras!
Me emocionou....